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A identidade do identitarismo

Estudando lógica, logo você se depara com a questão da identidade. A = A; A é diferente de ñA. Ou seja, uma coisa é idêntica a ela mesma. Uma coisa é diferente do que não é ela. Quando você sai do campo da lógica e passa a tratar com o Eu, a noção de identidade muda, Eu = Eu, claro. Você é você mesmo. Todavia, essa identidade não é lógica, é social e psicológica. Um Eu é idêntico a si mesmo? Ora, nunca! Falamos que o Eu é idêntico a si mesmo porque desconsideramos as inúmeras alterações no tempo e no espaço pela qual passamos.

A identidade da lógica é a chamada identidade idem. A identidade do eu, da subjetividade, é a identidade ipse. A primeira é uma identidade sem tempo e espaço. A segunda é uma identidade forjada no tempo e no espaço. Assim nos ensinou o filósofo Paulo Ricouer, no importante livro O si mesmo como um outro.

O erro do identitarismo que, na verdade, se distanciou dos movimentos de minorias, é o uso da identidade idem justamente onde devemos usar a identidade ipse. Eles, os identitários, querem usar a noção de identidade da lógica para pessoas, e isso não cabe. Eles reduzem as pessoas a uma característica escolhida sem qualquer critério legítimo, refletido e, então, a partir dessa redução, fazem da pessoa uma coisa. Aí aplicam a noção de identidade. Tropeçam feio.

Assim, reduzo o negro ao homem ou mulher que tem pele preta. Reduzo o homossexual ao que usa o ânus para o sexo. Reduzo a mulher, por exemplo, a uma pessoa que tem vagina ou útero, ou a uma pessoa “emotiva”. Essas reduções são próprias do identitarismo. A identidade do traço. Encontro o que é à primeira vista igual a todos os negros, e faço o mesmo para homossexuais e mulheres.

Mas quando saio da identidade idem e uso a noção de identidade ipse, me liberto da reificação, da coisificação. Tenho de considerar o Eu Negro, o Eu Homossexual, o Eu Mulher. Tenho de adentrar o campo da pessoalidade.

Cada Eu, nesse caso, é idêntico a si mesmo por elementos não redutíveis, mas, ao contrário, toda a história da subjetividade envolvida por cada Eu citado é considerada – deve ser considerada. A subjetividade negra não é feita pela cor da pele. Esta é apenas uma característica. O que importa para a identidade social do negro é ele pertencer ou não à cultura afro-brasileira e ter uma visão aliada aos movimentos de prestígio dessa cultura.

A subjetividade homossexual não está preenchida pelo uso do ânus. Homens héteros e mulheres também usam o ânus para o sexo. O que importa para a identidade social do homossexual é ele pertencer à cultura da homoafetividade e das lutas pelo prestígio do homoerotismo.

 O mesmo vale para outras minorias. Nenhuma mulher vai concordar que é mulher por conta de uma característica só. Ela sempre vai elencar um conjunto de características, que vão variar de cultura para cultura, e que devem preencher a sua subjetividade. Mulheres sabem que não podem ter identidade baseada na posse de vagina ou útero, e também não em serem “emotivas”. Uma mulher para ser mulher vai apresentar algo que é próprio do seu modo de ser mulher segundo uma subjetividade exibida, que contém práticas que inserem dentro de si o conservadorismo e o progressismo ao mesmo tempo.

As minorias vivem na democracia e é na democracia que eles se saem melhor. Mas, quando elas mesmas deixam de se verem como minorias, e adotam a ideologia do identitarismo, que usa a identidade idem e que torna absolutos os traços que em nada caracterizam aquela minoria, então surge aí o autoritarismo. O identitarismo se faz próximo do fascismo. Trata-se, nesse caso, de agir segundo a ideia de que um grupo é superior, que para se afirmar deve derrubar outros grupos, em especial aquele que se mostrava como sendo o universal. Uma parte da esquerda ainda não notou esse seu erro. Essa parte da esquerda, nesse seu comportamento, não retira preconceitos, mas os amplia.

Paulo Ghiraldelli, 64, filósofo


Foto: Madonna beijando Branca de Neve: desenho do artista Saint Hoax, do Oriente Médio

4 comentários em “A identidade do identitarismo”

  1. Os positivistas ajudam o identitárismo e, consequentemente, o neofascismo querendo reduzir o ser humano à células, DNA e biologia? Pode mandar a bronca se eu estiver sendo “Pondé”! Eu já vi uma direitista neoliberal e negra reduzir etnia a genética.

  2. Este texto está mais sucinto e objetivo do que os anteriores. Acho que está melhor explicado para aqueles que ainda não se familiarizaram com a crítica ao identitarismo. O professor Paulo é o único intelectual que vejo fazer a crítica com radicalismo e rigor nesse vespeiro. Quem passa por uma universidade pública sabe como são os diretórios acadêmicos, local de agrupamento de muitos ressentidos que se agrupam em torno da identidade.

  3. Está sendo muito enriquecedor acompanhar o Dr. Paulo. Já passei por um constrangimento público na universidade federal onde estudo por ter me identificado como mulher negra a partir de reivindicações nesse sentido do próprio movimento negro. E isso aconteceu num ambiente que nem era formal da faculdade, era politico. Fiquei com tanta vergonha, mas nunca tinha refletido sobre essa questão. Agradecida pela contribuições que vem me dando Educador.

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