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O identitarismo é filho do neoliberalismo e namora com o fascismo

Chamamos de “identitarismo” aquelas posições doutrinárias que enaltecem identidades. Se isso vem pela direita, em geral as identidades apontadas são alimentadas pelo nacionalismo e pelas religiões, em especial as religiões de maiorias. Quando o tema vem pela esquerda, as identidades apontadas são as de minorias recortadas não só positivamente, mas de maneira mais presente pela tentativas de reconhecimento e defesa.

Nesse caso, “mulheres”, “negros”, “LGBTs” ganham destaque. “Indígenas” também são lembrados. “Portadores de necessidades especiais” (ou outro nome mais atual), pessoas que estão no limite de serem incluídas em campos de patologias ou que já são postas neste âmbito (autistas, depressivos etc.) ou pessoas que podem estar se colocando no interior de grupos por razões estéticas (“gordos”, “feios”, “tatuados”, “gagos” etc.), todos esses, podem também estar girando ao redor da doutrina identitária.

Nos Estados Unidos os grupos identitários são bem mais variados em tipos. Há até mesmo grupos curiosos: os “pretenders” são pessoas que não são mutiladas, mas andam com apetrechos de mutilados e agem como tal, simplesmente por gosto. Talvez o crossdresser possa estar próximo dos “pretenders”? E os que querem só fazer sexo com mutilados? E os que só querem fazer sexo com anões? Sim, há também grupos desse tipo. Há grupos de lésbicas surdas, que reivindicam o direito de educar filhas (elas querem só ter filhas e não filhos) surdas como surdas, jamais procurando qualquer ajuda médica, mesmo quando sabidamente há maneiras de fazer as crianças escutarem. Segundo elas, o mundo deve ser povoado só por mulheres e a surdez ou coisa parecida (o mudo?) não poderia ser vista como patologia ou anormalidade, nesse caso. Seriam um grupo com identidade positiva, pois possuem uma língua etc. (e em teoria, a mulher pode gerar a mulher).

Podemos pensar também em grupos de minorias por meio de causas: a causa da descriminalização das drogas, a causa dos vegetarianos e veganos, a causa dos defensores de animais etc.

Que tais grupos minoritários possuam o direito de inventar direitos, isso é bem aceitável em nosso mundo ocidental no campo acadêmico e no campo dos debates jurídicos. Essa prática nasceu dos ativismos dos grupos. Mas, tanto pela direita quanto pela esquerda, já faz algum tempo, as necessidades e reivindicações de minorias têm ido para um lado, e o cultivo da identidade e do empoderamento individual tem ido para outro. Nesse segundo caso, abriu-se espaço para o que chamamos de identitarismo.

Requalifiquemos então o termo identitarismo. Um indivíduo identitário adota como elemento central de reconhecimento uma determinada característica corporal ou espiritual, e passa a tomar esse dado como o que lhe permite ou requisita empoderamento, e tenta ajustar a sociedade aos seus desígnios, tomados como prioritários e, não raro, acima de tudo o mais. Nesse caso, o que sustenta uma tal posição é a doutrina neoliberal que fomenta a diversidade (e não a singularidade), e que ao lado disso dispõe a individualidade moderna como algo natural e absoluto. A identidade é fonte de reconhecimento, ponto de partida e de chegada de todas as razões. Há aí uma hipostasia visível. O narcisismo típico do neoliberalismo, fruto da ideia de que cada um explora só a si  mesmo, sendo o “empresário de si mesmo”, emerge aí com grande força. “Os outros existem, ao lados do meu grupo, mas o Outro, o que me nega efetivamente, não tem nenhuma legitimidade e eu nem o escuto” – eis aí o grito de guerra do identitário. Nesse caso, desaparece a luta entra burgueses e proletários, capital versus trabalho, e emergem a efusão das práticas histéricas de tribos que nem mais coletivamente gritam, mas só gritam nos tribunais, individualmente. A sociedade da “guerra de processos de todos contra todos”. Em uma sociedade de muitas faculdades de Direito, isso vem a calhar.

A prática identitária se torna assim exatamente a requisição de uma sociedade neoliberal em que aquilo que se realiza é o contrário do temor de Sartre. O inferno não são os outros, mas o eu. O indivíduo plasmado em uma única identidade adquirida por necessidade neoliberal de empoderamento, não consegue alimento para uma vida individual rica, e sucumbe diante do sufocamento trazido pela repetição, marasmo, atividade frenética porém tediosa de sua conduta monotemática. O indivíduo identitário é um cansado da vida, no sentido de Nietzsche, mas de uma maneira peculiar: ele está esgotado do convívio consigo mesmo uma vez que seu eu se empobreceu junto à solidão em grupo. A dialética com o Outro, que lhe daria vida e riqueza de perspectivas, não existe. Tudo o mais ao lado é liso e positivo. Caso não seja, ele, o identitário, exige que assim seja, e pede que os obstáculos deixem de existir por decreto. Oscila entre o vitimismo e o triunfismo empoderado. Não conversa, apenas reitera palavras de ordem para exercer a “lacração”.

Nesse trabalho de lacração, de tornar o mundo à volta algo liso, o indivíduo identitário subverte a esperança de Sartre. No existencialismo havia a chamada esperança de Sartre. O pensador francês escreveu: é importante fazer alguma coisa com o que fizeram de nós. Sim! Era uma forma de advogar a autoconstrução, a tarefa de individualizar-se existencialmente e construir um eu livre e responsável, ou livre e por isso responsável. Mas o identitarismo toma “o fazer alguma coisa com o que fizeram de nós” de um modo muito particular: essa “alguma coisa” é transformada em uma única coisa: a fusão entre o ego e meia dúzia de palavras de ordem que empoderam o eu na medida em que o Outro é calado, deposto, eliminado. “Machista e sexista”, diz a feminista identitária raivosa, diante de qualquer coisa, principalmente do que pode e deve ser muita outra coisa. “Gordofóbico”, diz o gordo identitário diante de um médico que lhe mostra que ele está se deteriorando. “Racista”, diz o negro identitário acriticamente para qualquer posição que elege a mágoa e não o direito como uma alavanca para a libertação. “É o racismo estrutural”, diz o acadêmico (negro ou não) que banaliza a palavra, usando-a para não analisar nada, apenas para seu autovanglorio de quem pensa ser intelectual. A prática fascista do “cancelamento” surge aí com força total. Nessa hora, e só nessa hora, o indivíduo neoliberal age em grupo. É o seu momento de namoro com a conduta do fascio.

Ao lado disso, o identitarismo cava o fosso da prisão das minorias. Ao se mostrar monotemático, então se autocoloca no buraco que a sociedade já reservou para a minoria. Para cada coisa que quer falar, é lembrado pela sociedade que ele mesmo, como identitário, se disse dono de um “lugar de fala”. Então, que fique naquele lugar de fala. Arquiteto negro deve falar de assuntos de negros e não de arquitetura. Antropólogo negro deve falar do negro na cidade, e não da cidade. E assim por diante. Cada um no seu quadrado, como Durkheim diria, e como o neoliberalismo enalteceu. O identitário está sentado no interior de sua cova, e não percebe.

As minorias tem tudo para exercer o direito de criar direitos. Mas se se deixarem apanhar de todo pelo identitarismo, talvez sufoquem toda a criatividade que há no seu interior e não criem nenhum direito, apenas fomentem a abertura de mais faculdade geradoras de advogados. A sociedade do “eu te processo” é a garantia da sobrevivência dessa gente.

A política de esquerda é outra coisa. Ela não é identitária.

Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo 06/02/2021

4 comentários em “O identitarismo é filho do neoliberalismo e namora com o fascismo”

  1. Me lembro quando ainda existia a MTV Brasil, alguns passaram a reclamar de que não tinham apresentadores negros (pardos) o que era um absurdo, já que tinha o Thaide que apresentava um programa de rap nas noites da sexta-feira e principalmente o Léo Madeira, que apresentava quase 30% dos programas. Mas esse não valia, dado que ele não fala nem de assuntos de negros e um que ouve The Strokes e Foo Fighters não é digno de confiança.

    Mas o identitarismo do ressentido passou a vigorar na África do Sul desde o fim do Apartheid, onde o ANC faz de tudo para mudar as topominias de língua africâner para nomes inexistentes ‘africanos’ e suprimir a todo custo o uso do africâner como língua, pois essa é ‘racista’ a ponto de remover essa desde as notas impressas, comunicacção até como língua de instrução mesmo que seja a mais falada do país. Sem contar a remoção de monumentos.

  2. Professor, li seu artigo com atenção. Eu, esquerdista, anticapitalista sincrético e brasileiro, que acho a pauta identitária e dos “grupos de reconhecimento” uma abominação liberal, que, num mundo maduro intelectual e socialmente, sequer poderia ter espaço. Acrescento ao tema que uma coisa são as pautas minoritárias serem debatidas no sistema capitalista, e outra, muito diferente, seria debatê-las num modelo socialista, que não exclui a individualidade. O verdadeiro socialismo, que é uma potência ainda que não seja uma realidade, não se confina ao tribalismo, ao contrário, ele o atravessa. A tribalização é o estado de guerra, do confisco, do desacordo permanente, que interessa ao capital, que sustenta que a vida é um ato de sobrevivência, conquista e empoderamento. O socialismo é internacionalizante (não globalizante), integrativo, solidário, erótico, fusional do ponto de vista das culturas, e, como prefigurava Brecht, passa pela “importância de estar de acordo”, produzí-lo a partir do reconhecimento das individualidades. E não pelo exercício do poder, seja hegemônico ou minoritário. O divisionismo racial é um tática do poder, que se torna hegemônico especialmente nos modelos imperiais. Não é diferente na democracia liberal americana, que, atualmente, pauta o debate cultural no Brasil. A matriz sócio-cultural dos EUA é puritana, baseada na ideia do povo eleito, que se distingue das demais raças. Como muito bem diz o caboclo brasileiro Caetano Veloso: “nos Estados Unidos branco é branco, preto é preto”. Desconhecem a miscigenação, que Darci Ribeiro aponta como a matriz do homem brasileiro (especialmente do brasileiro colonial, anterior às ondas de neocolonização, ocorridas em fins do século XIX, de matriz italiana, alemã, japonesa, etc., estas de origem tribal e protofascista). O puritanismo, que sustenta a cultura estadunidense até hoje, é anti-erótica (no sentido da não-mistura), segregadora (inventaram o aparthaid) e, sobretudo comunitária, compreendendo a organização social pelo arranjo de grupos de uma identidade comum, porém jamais socialista, no sentido de estas comunidades se integrarem e, mais ainda, plasmarem-se umas às outras, como se deu no Brasil. A meu ver de maneira inédita e vanguardista no mundo. Acrescente-se que, ao romper com a tradição coletiva e sincrética do catolicismo (o catolicismo é uma extensão da assimilação de culturas híbridas do império Romano, que afinal a anexou), o puritanismo, com sua teologia da prosperidade (também exportada ao Brasil, via evangélicos), sustenta o discurso do individualismo e da propriedade que estende-se, por lá, aos seus grupos minoritários. A luta pelos direitos civis negros é justa, mas, deve-se lembrar, não rompe com a lógica tribalista, do reconhecimento da “nossa comunidade”, que não se integra às demais. É um pensamento puritano, e não me espanta que o gigante Martin Luther King fosse um pastor protestante. Para quem a lógica miscigenação racial ocorrida no Brasil não fizesse sentido. O Império (neste caso, a superestrutura do Capital) só pode ser vencido pela infraestrutura da cultura, humana, emancipada e real. Livre dos imaginários ideológicos e do afã reformista de ser “reconhecido” pela máquina liberal, que, insisto, não é cultura, mas precisamente seu contrário, o processo de desumanização. Para mim, a história do Brasil está(va) na vanguarda neste sentido da cultura que desafia os programas do poder. Agora, infelizmente, parece que cedemos aos novos dogmatismos coloniais, exportados, sem filtro, da américa-do-norte.

    1. Thiago, o mais curioso é que lá a miscigenação também é enorme, só que eles escondem de todos os jeitos. Basta ver que lá, tal como aqui quase não existem negros escuros como os africanos, logo há miscigenação.

      Os próprios crentes são uma mistura do judaísmo com a macumba e outras crendices locais, por isso se espalha como fogo em palha. E o sincretismo lá também existe, tanto que o pentecostalismo foi por um filho de escravos que foi expulso da igreja Batista. No Brasil quase não há religiosidade, na verdade existem as crendices locais e a supersticiosade.

  3. Thiago, o mais curioso é que lá a miscigenação também é enorme, só que eles escondem de todos os jeitos. Basta ver que lá, tal como aqui quase não existem negros escuros como os africanos, logo há miscigenação.

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