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O PENSAMENTO E A GUERRA

Conheço duas passagens na literatura filosófica sobre a experiência de queda e perda de consciência. As célebres quedas de Montaigne, derrubado por um cavalo, e a queda de Rousseau, derrubado por um cão dinamarquês. Os filósofos que comentaram tais tombos, a partir da descrição deixada pelo francês e pelo genebrino, enfatizaram a ideia de eles fizeram textos que prefiguraram o que seria a noção de inconsciente, que depois se incorporou ao nosso saber a partir da psicanálise. Quero contar aqui uma experiência semelhante, em que também fiquei desacordado, mas que produziu um efeito bem diferente daqueles relatados por Montaigne e Rousseau.

O relato deve me servir para introduzir uma noção sobre pensamento e filosofia, e uma conclusão sobre a guerra – esta guerra que vivemos, protagonizada no epicentro da chamada Faixa de Gaza. Mas o que digo aqui, talvez, valha para todas as outras guerras.

Quando eu tinha lá por volta dos treze anos, eu passava todas as tardes na quadra de basquete da minha escola. Quando a quadra ficava com as meninas, por conta de aula de Educação Física, eu subia a arquibancada ao lado, e continuava meus exercícios de habilidade com a bola. Tentava usar os grandes pilares do pátio como adversários. Driblava, girava, e fintava os pilares. Numa dessas incursões contra adversários de cimento maciço, eu perdi o controle das passadas e atirei-me contra um desses grandalhões. Fiquei atordoado. Andei alguns passos e deite-me em um banco de madeira, ao fundo do pátio, perto do bebedouro. Ali fiquei. Não sei se desacordei ou dormi. Mas ali fiquei durantes horas.

Quando as aulas das meninas terminaram, a dona Jane, a professora de Educação Física, última a sair do local, notou que eu estava lá deitado no banco. Foi ver o que havia ocorrido. Acordei, sabia quem era ela, mas estava com a sensação de ter perdido a memória. Ou, digamos mais corretamente, estava com a sensação de que algo não ia bem comigo. Digo sensação de perder a memória, mas, de fato, não perdi a memória. Sabia quem eram meus pais, onde era minha casa e tudo o mais. Mas comecei a chorar. Um desespero se apoderou de mim, pois eu me via sem memória. Ou menos sem alguma coisa que deveria ser parte de mim. Eu havia perdido alguma coisa que me pertencia profundamente.

Dona Jane me levou para casa. Lá, diante do meu choro, do meu desespero, e da informação minha mesma de que eu havia batido a cabeça, chamaram um médico. Foi então que eu emergi como um duplo – mas apenas para mim mesmo. O médico e meus pais conversavam comigo, mas eu mesmo me sentia em uma redoma, preso, observando aquele que conversava com eles, que não era eu. Aquele eu que conversava com eles era – assim eu sentia – o impostor de mim mesmo. Comecei a chorar. Só que, nesse segundo choro, eu chorava em minha alma, e ela estava presa. O outro, o eu que se conversava com meus pais, parecia não chorar. Eu comecei a chorar e a gritar, avisando meus pais que aquele que conversava com eles não era eu, ou não era o eu verdadeiro. Pois eu estava ali, preso, e se sentia como quem havia perdido a memória, ou havia perdido algo que eu avaliava ser algum coisa minha, propriamente minha.

Não sei quanto tempo durou isso. Mas foi o suficiente para eu ter certeza de que nenhum outro pesadelo poderia ser pior.

Tomei os remédios indicados, e então fiquei sozinho. Ou quase! Pois na minha frente, ou melhor, tomando o que eu entendia que era minha frente, ficou aquele outro eu, o impostor, que dizia estar bem ou se comportava como estando bem. Não sei se o que eu falava era ouvido. Mas o que ele, o outro eu falava, era ouvido. Pois meus pais haviam reagido a ele, não a mim. Eu tinha a sensação de que o eu mesmo, o eu verdadeiro, era aquele preso em parede de vidro, com a sensação de perda de memória. Mas, creio que para os meus pais, talvez o outro eu, aquele que estava dizendo que estava confuso, mas que estava relativamente bem ou parecia bem, fosse o verdadeiro. Todavia, não consegui saber de fato o quanto aquele outro eu informava meus pais, não consegui saber o quanto eu mesmo, aquele com sensação de perda de memória ou de perda de algo próprio, não estava sendo ouvido, escutado, visto. Durante todo esse episódio de confusão, eu desconfiava, às vezes, nesses rápidos momentos que eu estava em contato com meus pais, que o outro eu, aquele que parecia estar em efetivo contato, era apenas alguém que eu via, e que estaria fingindo conversar com meus pais, ou que talvez fosse fruto de um desconforto, pois quem conversava com meus pais era, afinal … eu! De fato, talvez eu mesmo, o verdadeiro, o que estava sentindo o desconforto, é que estivesse conversando com meus pais. A confusão dessa duplicidade se manteve mais ou menos umas duas horas. Entre 18 e 20 horas. Após isso, tudo passou. A duplicidade acabou. Voltei do inferno para o meu quarto, onde eu já estava. Talvez a sensação de perda de memória tenha sido apenas o modo como interpretei a perda de um dos polos do eu.

Muitos anos depois, estudei em filosofia a experiência do “si mesmo como um outro”, ou, falando como Hannah Arendt fala de Sócrates, de que ele viveu a experiência do “dois em um”. No Hípias maior, como lembrado por Arendt, Sócrates engana o sofista, exigindo que ele responda perguntas aparentemente rudes. Diz ao sofista, mantendo sua costumeira ironia, e a fim de forçá-lo a responder, que não seriam respostas para ele mesmo, Sócrates, mas para um sujeitinho rude que morava com ele, que exigiria respostas quando ele voltasse para casa. Arendt deixa relativamente em aberto a interpretação dessa experiência. Mas, certamente, podemos pensar que era uma forma de Sócrates dizer o que de fato era o pensamento, um diálogo consigo mesmo, mas que poderia ser tomado como de fato um diálogo entre duas pessoas. Seria uma espécie de descrição de Sócrates do que chamamos de reflexão. Uma maneira de Sócrates falar da reflexão sem usar do modo que utilizamos para descrever a reflexão hoje em dia. Ou seria também uma forma de Sócrates lembrar da presença de seu Daimon. Seja como for, eu pude ter a nítida sensação de que eu havia vivido isso, mas de uma maneira traumática. O “dois em um” havia estado em mim não como essa experiência de reflexão cotidiana e relativamente indolor, que todos temos, a do pensamento enquanto um “diálogo interior”, mas explicitado por Sócrates como um diálogo mesmo, que ele teria com alguém habitante de sua casa. Vivi a reflexão como efetiva cisão. Como se para ir do eu ao si mesmo e voltar, não ocorresse um movimento simultâneo, como é nosso cotidiano reflexivo. É como se eu tivesse tido a experiência da reflexão, mas segundo um tempo decorrido que provoca a dor, algo marcado no relógio, significando duas horas. Algo que explicitou uma dualidade não propriamente como a cisão costumeira (e aparentemente indolor) da reflexão. Um “dois em um” em que predomina o dois e não a unidade.

Vamos do eu ao si mesmo e voltamos de modo tranquilo. Mas, para mim, naquele dia da batida na cabeça, essa operação significou viver um hiato de duas horas. Um terrível e horripilante pesadelo.

Não estou relatando isso com o objetivo de contar um acontecimento individual, muito menos algo que possa remeter a uma redução médica, sobre neurologia ou mesmo sobre psicologia. Não está em questão a minha trombada no pilar e o que teria ocorrido, como é costume dizer agora, quase acriticamente, o que aconteceu “no cérebro”. Quero falar aqui da estrutura mesma do que se chama pensamento. Não o meu pensamento. Mas o pensamento como aquilo que não precisa ser remetido a um indivíduo, a uma psiquê. Falo aqui do pensamento enquanto pensamento, Para a filosofia, trata-se necessariamente de reflexão. Justamente por isso tem uma conotação ética.

O pensamento é um acontecimento. Trata-se de um acontecimento reflexivo, de ida e volta, que permite, em sua ontologia, que ele se ponha como o criador de um campo ético. Pensar é refletir e refletir é ir de um polo a outro – o eu e o si mesmo – de modo que a mesma estrutura, uma vez cindida, possa responder perguntas que aparentemente seriam meramente retóricas, mas que efetivamente podem ser respondidas seriamente por conta da cisão. Eu e si mesmo pertencem a dois polos do pensamento, de uma unidade, mas essa unidade tem essa capacidade de se duplicar e estabelecer um diálogo sério nela própria. Estabelece-se no pensamento uma cisão que é a base da consciência. O ter consciência, o pensamento que se sabe pensamento por meio da ida e da volta a dois polos, põe essa dinâmica como uma dinâmica avaliativa. Essa reflexão é o que permite que o pensamento se estabeleça como o lugar em que se constrói a avaliação do que é o certo e o do que é o errado. O eu pergunta ao si mesmo, e o si mesmo, como se fosse um outro, responde. Nesse dialogo mora a ética. O ethos, o que é costumeiro e habitual, é conferido nessa pergunta que vai e volta, nesse processo de ressonância que se estabelece entre dois polos: a consciência.

Essa estrutura dupla, cindida, essa forma dialogal e avaliativa enquanto uma ressonância, é o que é o pensamento. A estrutura da linguagem, claro, é o pensamento em sua exposição ontológica. Não é o pensamento de fulano de tal. Não é o pensamento de uma alma ou de uma mente. É o pensamento enquanto um campo de ocorrência que a filosofia elege como o seu campo de observação e ao mesmo tempo o campo de sua produção.

Não raro, quando as decisões do pensamento são difíceis, a dinâmica da ressonância pode implicar em processos que poderíamos chamar de dolorosos, ou melhor, processos de trauma. A ressonância se faz lenta. A cisão parece se por, então, entre dois polos que se distanciaram. O caminho entre a pergunta e a resposta se alonga. Por quanto tempo pode se alongar? Pode se alongar no sentido temporal de um modo que a unidade se faça muito esgarçada, e então tudo que ocorre poderia ser descrito por algo sinônimo da dor que eu próprio senti quando meu eu e meu si mesmo ficaram cindidos de maneira traumática, no processo de bater a cabeça. Há decisões éticas que levam séculos para serem tomadas. O pensamento engripa. Nessa hora, podemos notar grandes hiatos na história da filosofia. É quando uma questão fica em suspenso durante muito tempo. Todos que dependem de uma decisão, e que não encontram, padecem de uma dor.

Ás vezes as guerras surgem como espasmo do pensamento que não conseguiu manter a ressonância dos polos, que não conseguiu efetivar a dinâmica própria da consciência. Estabelece-se uma dor imensa, uma violência contra o pensamento em geral. Na guerra atual na Faixa de Gaza e arredores, essa ideia de um processo de hiato da resposta vazia se faz bastante elucidativa. A filosofia tem ali um silêncio de muitos anos. E a política uma ordem que gira em falso.

Paulo Ghiraldelli, filósofo, professor, escritor e jornalista.

5 comentários em “O PENSAMENTO E A GUERRA”

  1. Muito interessante! Essa é uma experiência que todos nós vivemos em algum momento da vida! E estamos vivendo agora!

  2. Texto muito complexo. Tive que ler mais de uma vez para entendê-lo. Estou estudando as bobliografias indicadas pelo senhor Professor Paulo. Obrigada por tudo.

  3. Texto primoroso, conceituando, de certo modo, o pensamento como acontecimento, talvez como ato reflexivo, no “processo de ressonância” que dá forma à consciência – no caso da guerra citada (ou qualquer guerra), a consciência esvaziada do ir e voltar nesse processo, quando aqueles que decidem o fazem tão somente tomados por um agir instrumental, pela razão calculante (de interesses escusos, mesquinhos, privados), vazia do caráter ético, de juízos de valor. Obrigado, professor, por nós ajudar a não perder a “ressonância” do pensamento! Ademais, a “narrativa” introdutória da experiência da duplicidade é muito rica para o compo literário! Como se diz, daria um conto….

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