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ABORTO: VOTO FORTE E HISTÓRICO DE ROSA WEBER

O que a ministra Rosa Weber votou, quanto ao tema do aborto? O voto é claro: trata-se da descriminalização do aborto até a décima segunda semana de gestação. Por que Rosa Weber votou favoravelmente?

O tema do aborto percorre cinco áreas das práticas humanas: religião, metafísica, medicina, direito e política.

Do ponto de vista religioso, em geral a vida é tomada de modo essencialista. Ela começa na fecundação. Mas ela não é definida exclusivamente pela fecundação, e sim por um elemento de caráter metafísico, a alma, que se instala já no momento da fecundação. A alma humana é presente divino ao corpo, e quando se faz o corpo parar de funcionar, vem a aflição da alma. Deus coloca a alma no corpo, só cabe a ele vir tirá-la. A vida humana é sagrada, só Deus pode dar a vida e só Deus pode tirá-la.

Do ponto de vista metafísico, pode-se tomar a posição essencialista, mas sem qualquer vinculação a um demiurgo. Basta entender que a alma não é algo da existência humana, e sim da essência do homem e da mulher. Trata-se de um elemento imaterial que, uma vez presente no corpo, o faz se desenvolver e funcionar. Uma posição metafísica essencialista pode ser relativamente neutra do ponto de vista ético, não fazendo qualquer juízo de valor sobre a interrupção da vida.

A prática médica trabalha com um princípio diferente. Ela é, digamos, filosoficamente utilitarista e hedonista. A medicina é uma ciência altamente valorativa. Ela visa a maior felicidade para o maior número de indivíduos envolvidos. Por isso, ela se organiza para fazer valer a redução de danos. Supondo que o fim do sofrimento físico é a felicidade, a prática médica busca a sobrevivência de mãe e feto. O médico, por conta de sua prática tradicional de séculos, não tem como trabalho tirar a vida. Desse modo, o médico não discute a vida do feto, mas a sobrevivência do feto e da mãe. Se por algum possível dano à mãe, o feto precisa ser tirado, discute-se aí algumas datas, que variam um pouco no espaço e no tempo. Se há condições técnicas e tecnológicas de fazer o feto sobreviver fora do útero, pode-se optar por retirá-lo. Tudo depende de como os médicos avaliam o conjunto, mãe e feto, na tentativa de proteger a mãe e causar o menor dano possível à dupla. Uma data consensual mundial sobre interrupção da gravidez, na prática médica, é em torno da décima segunda semana do feto.

O direito se organiza em torno do ethos da população em questão. Ele normatiza e institucionaliza o que é relativamente consensual na prática de vida de um povo. Ou seja, ele torna passível de penalidades aquilo que escapa ao que uma determinada sociedade toma como contrária ao seu ethos. É claro que o ethos de um povo passa pelas suas noções religiosas, metafísicas e médicas. No mundo ocidental, em geral a prática médica tem um grande peso no modo como o direito vem tratando o aborto. Isso não quer dizer que há uma vitória da ciência sobre a filosofia e a religião. A prática médica, como já disse, é uma filosofia – trata-se do utilitarismo e do hedonismo. O direito age, então, quando se trata de autorizar legalmente o aborto, tendo como parâmetro a décima segunda semana de existência do feto.

Por fim, há a política. O aborto se torna algo aceitável, ou legal, por conta das decisões que são frutos de embates políticos. No mundo moderno, a política se define por direita e esquerda, ou conservadores e liberais (nesse segundo caso, a terminologia se adequa mais aos Estados Unidos). A direita usa de argumentos religiosos e metafísicos para não ceder quanto a práticas de aborto. A esquerda usa de argumentos relativos à saúde pública, e então evoca algumas datas postas pela prática médica. O argumento da esquerda traz a novidade: o aborto tornado ilegal em toda e qualquer data amplia os abortos clandestinos, prejudica a saúde da mulher, onera o sistema de saúde pública, além de ferir a condição de cidadania da mulher, tornando-a incapaz de decidir pelo destino de seu corpo. A direita pode retrucar, dizendo que o direito da mulher sobre seu corpo não implica em direito sobre o feto, que não é necessariamente um órgão de seu corpo. A esquerda, então, pode furar o argumento da direita por meio de outros caminhos. O próprio caminho legal, constitucional, é o que é em geral invocado nas democracias ocidentais: a penalização com multa ou prisão da mulher que aborta por iniciativa própria (ajudada ou não por terceiros) é uma dupla penalização. Ou seja, é da mulher, em geral, o desejo de não abortar, mas se vários fatores a levam a abortar, então, após o processo doloroso – físico e psicológico – a mulher ainda tem de suportar a condenação social e jurídica. A esquerda acentua, ainda, que o aborto acaba se tornando um prática das camadas ricas, sendo legal ou não, e uma forma de punir a mulher pobre, que fica à mercê da clandestinidade do aborto e à mercê da polícia.

Não duvido que tudo o que escrevi acima tenha passado pela cabeça da ministra Rosa Weber. A ministra é relatora de uma ação apresentada pelo PSOL em 2017, que pede ao STF que se manifestasse sobre a interrupção da gravidez. Como ministra do STF, seu voto, tinha de se pautar pela proteção da cidadania da mulher enquanto proteção instituída constitucionalmente. O voto se fez através de um documento de cem páginas. Há no voto um traçado histórico sobre a condição da mulher, e cito aqui o ponto que, no meu entendimento, cabe destaque no documento, pois é exatamente o ponto em que a ministra faz valer os direitos constitucionais:

“A dignidade da pessoa humana, a autodeterminação pessoal, a liberdade, a intimidade, os direitos reprodutivos e a igualdade como reconhecimento, transcorridas as sete décadas [de subalternização da mulher], impõem-se como parâmetros normativos de controle da validade constitucional da resposta estatal penal”. (Documento do STF)

Faço o destaque acima por uma razão que penso ser óbvia. A ministra caminhou pela via obrigatória de um magistrado que tem como objetivo máximo proteger a Constituição, e dar guarida à população no que a Constituição proporciona de cidadania plena para os integrantes da nação. O princípio básico seguido por Rosa Weber foi exatamente este: a penalidade precisa ser controlada para que ela não elimine a cidadania da mulher, uma cidadania posta como de “segunda categoria” há décadas. O voto protege a igualdade entre brasileiros, pondo a cidadania da mulher em situação de plenitude. Os preceitos de cidadania invocados: A dignidade da pessoa humana, a autodeterminação pessoal, a liberdade, a intimidade, os direitos reprodutivos e a igualdade como reconhecimento. Assim, não se trata de um voto em “favor do aborto”, mas um voto em favor do controle penal de prática que é consensual diante de nosso ethos. O aborto já ocorre, e é preciso regrá-lo de modo que ele diminua e de modo que a mulher seja protegida. A clandestinidade nunca ajudou a cidadania da mulher, muito menos ajudou na diminuição da prática abortiva.

Paulo Ghiraldelli, filósofo, professor, escritor e jornalista

4 comentários em “ABORTO: VOTO FORTE E HISTÓRICO DE ROSA WEBER”

  1. Parece ter sido exatamente isso que o Professor coloca. O voto de Rosa Weber foi em prol da cidadania da mulher em sua plenitude, em consonância com a Constituição Cidadã. Portanto indiferentemente da camada social à que a mulher pertença.

  2. Sim eu sou contra o aborto porque tem muito geito d evita então que evita antes tem muitos meio d evita não mata o inocente

  3. Para se posicionar sobre o aborto, não seria interessante uma ampla discussão sobre o que é a morte, do que somos feitos e o que morre em nós?

Não é possível comentar.

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