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NOSSA SOCIEDADE IMAGÉTICA.

Foi dito que vivemos na “época da imagens de mundo”. O próprio mundo, o real, se tornou imagem. Também foi dito que vivemos na “sociedade do espetáculo”, que nossas relações estão todas mediadas por imagens. É de fato um mundo diferente daquele criado, principalmente, pela invenção da imprensa.
Aquele era o mundo dos textos.

Não que o alfabeto, a escrita e, enfim, os textos, não sejam imagens. Sempre foram. As letras também foram desenhadas. Todavia, imagem e texto nos põe em condições diferentes, nos faz pensar, sentir e agir de modos diferentes.

Quando vemos uma imagem, nosso olhar roda um tanto que aleatoriamente. Ficamos atentos a certos traços que mais nos atraem. Mas não há qualquer direção impositiva para todos, vinda da própria imagem, capaz de fazer nossos olhos caminharem de um modo e não de outro. Todavia, ao criarmos o alfabeto, a escrita, e principalmente após a invenção da imprensa e depois a alfabetização de muitos, geramos um olhar treinado para nova atividade. A escrita põe desenhos que seguem uma linha. As letras e as palavras seguem uma linha, que no Ocidente é a linha horizontal. Algo segue necessariamente algo. A causalidade que está posta na natureza adentra o modo de se olhar a escrita. Há uma sequência. Essa sequência é que faz o desenho das letras nos fornecer um sentido. O simbólico se alia ao significado. Semiótica e semântica estão juntas. O alfabeto e a escrita implica em um grau de abstração superior. Hoje, esse modo de ver está sendo superado pelo modo de querer encontrar o sentido de algo na imagem. Todavia, a imagem em nosso mundo, talvez desde meados do século XX, e principalmente agora (primeiro com a TV e no momento atual com a Internet e a simultaneidade das transmissões e a incrível democratização das transmissões), demos um novo passo.

As novas gerações são imagéticas, menos afeitas aos textos. Nesse sentido, a lógica que imita a causalidade natural, colocando sequências, deixa de ser algo do treinamento mais intensivo. Todos aprendem a ler. Mas a questão é que olham imagens em profusão, e as imagens que olham são muito mais magicizadas que as de antes da escrita. Aquelas, alimentavam os mitos. Estas, são produzidas por aparatos técnicos que escondem suas mediações. Surgem na tela como que vindas do nada. São uma fetichização em grau elevado.

As imagens que brotam diante de nossos olhos, que estão fixos em telas de smartphones, fazem com que fiquemos com a impressão de serem os efeitos de causas que são a realidade, sem qualquer mediação. Não há o desenhista, o pintor ou autor de textos, há apenas a imagem que surge e reina. Ela dança viva diante de nós. Não estamos sob efeito de ilusão. Este é o nosso real.

É interessante notar que essa magia coloca a foto sem filtros, feita pela máquina, como o real. O que é anunciadamente acrescentado por um aplicativo ganha o nome de o artificial. Todavia, nem mais vivemos sob tais circunstâncias. Isso já passou. A imagem transmitida sem delay é tida como real mesmo quando as plataformas de internet anunciam o uso de filtro.

Pode-se fazer um desfile de beleza com pessoas que não se arriscariam nesse desfile em outras circunstâncias, e isso não como filme ou vídeo, mas em tempo real. E o que é mais interessante: todos podem fazer isso; muitos podem realizar uma tal performance ao mesmo tempo enquanto outros, também ao mesmo tempo, podem ver e opinar. Se há diferenças na imagens do que seria o mesmo desfile, isso torna secundário. As pessoas atribuem tais distinções à capacidade da máquina, ou à “qualidade da transmissão da internet”, e de modo algum pensam no software como alguma coisa que foi feita por mãos humanas, por cérebros humanos e, portanto, por gente que projetou em conceitos todos os seus preconceitos, transmutados em algoritmos. Eis o mais tragicamente engraçado nisso tudo: um tal desfile de beleza é sempre um simulacro e, por isso mesmo, hiperreal: as bocas são entortadas e as pernas tornadas avantajadas. A heroínas de histórias em quadrinhos dos anos sessenta e setenta se tornaram as modelos das modelos profissionais, e se apresentam como o ideal das modelos amadoras que, enfim, são todas as mulheres, toda a população feminina (o que vale para os homens também). Todo mundo pode ser modelo e “celebridade” no mundo da transmissão via internet. E ninguém mais aceita que as mulheres não sejam, de alguma maneira, as mulheres surreais de Milo Manara. A internet manariza tudo, e quanto mais faz isso, mais o hiperreal (ou seja, o exagerado) se torna a condição para que possamos dizer que a imagem foi bem fiel ao real. Nessa atividade frenética todos os algoritmos funcionam. A inteligência artificial, só possível em época de Big Data, faz seu serviço.

Caso se tenha que encontrar alguém fora da internet (mulher ou homem que querem namorar ou só fazer negócios), este que está para ser encontrado não vai ser revelado como “outra pessoa”, mas como uma cópia da cópia do mundo online. A academia, as drogas e a medicina deverão acertar os ponteiros, de modo que o encontro seja um bom encontro. Afinal, nesse nosso mundo, ninguém pode desagradar. Ninguém suporta ser desagradado. É um mundo narcísico, sim, mas também um modo de autossatisfação de caráter imediatista. Por isso mesmo a suavização das relações são impostas com cinismo de “todos contra todos”.

Qual o problema nisso tudo? Há vários. Posso citar alguns, inclusive aquele que nos atingiu por esses dias.

O que ocorre é que os algoritmos, diante de imagens, não fazem re-conhecimento. Só o homem pode conhecer e, então, reconhecer. O que o algoritmo faz é agrupar e desagrupar dados segundo equações. Não é o homem que julga se uma imagem é ou não pornográfica. É a probabilidade de determinadas disposição de pontos (figura) virem juntas com outra disposição de pontos (outra figura). Em termos radicais, poderíamos dizer: não há qualquer semântica nisso, somente semiótica. Símbolos trombam com símbolos e determinam o futuro de uma publicação. Ficamos no reino do objetivo. Mas, também, no reino do mágico. Pois se uma imagem é eliminada como “pornográfica” pelo algoritmo de alguma plataforma, é por razões que lhe “ensinaram” que tais figuras com outras figuras não poderiam estar juntas. A imagem é descartada de um canal do Youtube por maquinaria. Um símbolo não é coadunável com outro símbolo por decisão de um software. Mas, quando o Youtube lhe diz a razão, ele invoca a “pornografia”, e diz estar tentando tornar o ambiente da rede social “seguro”. Ao lado de mil bundas nuas, que ficam no Youtube, a sua imagem nada pornográfica, apenas satírica, é posta como o seu crime. Seu canal desaparece. Os mil canais de bundas mostradas permanecem. Os mil canais de violência feita para gerar dinheiro, então, são eleitos os melhores.

A segurança invocada pela plataforma, nesse caso, é realmente neutra? Pode ser objetiva, mas não neutra. Ela vem lá do âmbito da programação dos algoritmos, e tal programação tem, em primeira instância (ou última, conforme o que se considera ponto iniciai), a segurança da rede em função de interesses comerciais, e os os interesses comercias de um público específico da história e da geografia. No nosso caso, há de se lembrar que o público consumidor brasileiro tem, agora, quase 40 milhões de evangélicos. A máquina é a máquina de ver pornografia que, no limite, olha o ambiente segundo esse tipo de novo homem brasileiro. O que ocorre não é a reprodução do senso comum. É bem pior. Trata-se da reprodução do que é mais simplório.

Nosso canal no Youtube foi derrubado pela avaliação da máquina. Um “pipi” do tipo daqueles do Geraldão do Glauco, tão nocivo às Senhoras de Santana (lembram?), é detectado pelos algoritmos como o que torna o ambiente da rede social como “inseguro”. Uma série de poses de todo tipo de mulheres nuas, em posições conjuntas que são consideradas como arte pela Anitta (e talvez só por ela), passam tranquilamente pela checagem do algoritmo. Mas o nosso canal, diferentemente, é visto como “inseguro”. Ele é criador de tarados, incapaz de oferecer o que é o bom para a “família dos homens de bem”, então, nosso canal é derrubado. E assim fica. A imagem considerada insegura para o ambiente é aquela tomada pela maquinaria por um processo aparentemente objetivo, mas, efetivamente, conservador porque simplório.

Caso você tente falar com alguém na plataforma, só máquinas, com respostas esteriotipadas fingindo ser pessoas, lhe responderão. Eis aí o mecanismo de poder por conta do nosso adormecimento em uma sociedade imagética. Não estamos em uma sociedade do conhecimento, mas em uma sociedade da não-cognição.

A direita política acha que cultiva a liberdade ao desejar um mundo em que é vigente esse ambiente criado pelas redes sociais das plataformas. A esquerda acha que pode regrar tais redes sociais exigindo que as plataformas usem outros algoritmos, os que identificam ódio. A direita está errada, pois as plataformas não trabalham com a liberdade. A esquerda está errada, pois os algoritmos não saberão ser melhores. O que é necessário fazer é obrigar por lei que as plataformas estabeleçam com seus usuários e governos uma relação de conversação humana, entre pessoas. O texto produzido pela conversação sem a máquina tem de voltar a mediar as nossas relações.

Paulo Ghiraldelli, filósofo, professor,l escritor e jornalista

3 comentários em “NOSSA SOCIEDADE IMAGÉTICA.”

  1. Osni Winkelmann

    O Tmblr há alguns anos mudou de direção e a nova administração achou por bem banir a pornografia da plataforma (parece permitir nudez não explícita) para se tornar mais amigável aos anunciantes.
    Houve uma reação dos criadores de conteúdo que passaram a repor cada Blog censurado com dezenas a mais de mesmo conteúdo.
    Cabe dizer que o Tmblr permite a criação de vários Blogs por criador, são como as pastas do Pinterest, eu mesmo tenho 4 Blogs:
    1. de Arte,
    2. de Ilustração/Quadrinhos,
    3. de Imagens inusitadas e
    4. de criações próprias, desenhos, pinturas digitais, que publico/arquivo no sítio.
    Cabe dizer, também, que a maioria dos criadores de conteúdo da plataforma, segundo minha percepção, é/era composta de jovens ligados a culturas alternativas e LGBTQ, ligados às Artes, Literatura e à Moda, daí a facilidade da mobilização desafiando as novas regras impostas.
    Há alguns dias postaram um artigo questionando se o Tmblr ainda era relevante para o momento.
    Na minha opinião, o modo como a plataforma se comporta e o modo como os criadores respondem poderia ser um bom caso a ser estudado.

  2. A imagem não é o problema, você ultrapassou seu score com múltiplas infrações e agora com uma atitude um tanto infantil para um senhor de quase 100 anos culpa o robô, os crentes, as plataformas e todo mundo que julgar culpado. Você é o culpado, chora na cama que é mais quentinho.

  3. É preciso restabelecer a relação dialógica humana para que se possa chegar a solução de um problema. Como derrubar um canal com a justificativa de algoritmos neutros, uma vez que há centenas de perfis com “semelhantes” imagens e/ou discursos, cujos conteúdos somente atendem a fins lucrativos que não são derrubados? A quem(s), ou seja, a quais “algoritmos humanos” interessa a derrubada de um canal de um professor que, entre muitos assuntos e conteúdos, discute e dá aulas magistrais justamente sobre o funcionamento dos interesses mercadológicos desse meio. Quem(s) são esses grandes “algoritmos investidores” incomodados que têm tanta força (capital) para derrubar um canal com mais de 20 anos? Grandes grupos acionistas representados pelo parlamento ultradireitista brasileiro como o grupo Leman por Tábata Amaral e CIA, por exemplo.

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